“Padre. — Concordo que, nas questões gerais, o Espiritismo é conforme às grandes verdades do Cristianismo; dar-se-á, porém, o mesmo em relação aos dogmas?
Não contradiz ele alguns princípios que a
Igreja nos ensina?
Allan Kardec — O Espiritismo é,
antes de tudo, uma ciência, não cogita de questões dogmáticas. Esta ciência tem
consequências morais como todas as ciências filosóficas; essas consequências
são boas ou más?
Pode-se julgá-las pelos princípios gerais
que acabo de expor.
Algumas pessoas se iludem sobre o
verdadeiro caráter do Espiritismo. A questão é de grande importância e merece
alguns desenvolvimentos. Façamos primeiro um termo de comparação: a eletricidade,
estando na Natureza, existiu em todo tempo e produziu sempre os efeitos que
hoje observamos e muitos outros que ainda não conhecemos. Na ignorância da sua
verdadeira causa, os homens explicavam esses efeitos de um modo mais ou menos
extravagante. A descoberta da eletricidade e de suas propriedades veio lançar
por terra um punhado de teorias absurdas, espargindo a luz por sobre mais de um
mistério da Natureza. O que fizeram a eletricidade e as ciências físicas para certos
fenômenos, o Espiritismo o fez para outros de ordem diferente.
O Espiritismo funda-se na existência de um
mundo invisível, formado pelos seres incorpóreos que povoam o espaço e que não
são mais que as almas daqueles que viveram na Terra, ou em outros globos, nos
quais deixaram seus invólucros materiais. São os seres a que chamamos
Espíritos, seres que nos cercam e incessantemente exercem sobre os homens, sem
que estes o percebam, uma grande influência, e desempenham papel muito ativo no
mundo moral, e mesmo, até certo ponto, no físico.
O Espiritismo está, pois, em a Natureza e podemos dizer que, numa certa ordem de ideias, é ele uma potência, como a eletricidade o é sob outro ponto de vista, e como ainda a gravitação é uma outra. Os fenômenos, de que o mundo invisível é a fonte, produziram-se em todos os tempos; eis aí por que a história de todos os povos faz deles menção. Somente, em sua ignorância, como se deu com a eletricidade, os homens os atribuíam a causas mais ou menos racionais, e deram, nesse ponto de vista, livre curso à sua imaginação.
Mais bem observado depois que se vulgarizou, o Espiritismo vem derramar luz sobre grande número de questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião; e a prova disso é que ele conta entre os seus aderentes homens de todas as crenças, que por esse fato não renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos que não deixam de praticar todos os deveres do seu culto, quando a Igreja os não repele; protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e mesmo budistas e bramanistas.
Ele repousa, por conseguinte, em
princípios independentes das questões dogmáticas. Suas consequências morais são
todas no sentido do Cristianismo, porque de todas as doutrinas é esta a mais
esclarecida e pura; razão pela qual, de todas as seitas religiosas do mundo, os
cristãos são os mais aptos para compreendê-lo em sua verdadeira essência.
Podemos exprobrá-lo por isso?
Cada um pode formar de suas opiniões uma
religião e interpretar à vontade as religiões conhecidas; mas daí a constituir
nova Igreja, a distância é grande.”
O Que é o Espiritismo - 59.
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“Qual a filosofia ou a teosofia capaz de resolver estes problemas? É fora de dúvida que, ou as almas são iguais ao nascerem, ou são desiguais. Se são iguais, por que, entre elas, tão grande diversidade de aptidões? Dir-se-á que isso depende do organismo. Mas, então, achamo-nos em presença da mais monstruosa e imoral das doutrinas. O homem seria simples máquina, joguete da matéria; deixaria de ter a responsabilidade de seus atos, pois que poderia atribuir tudo às suas imperfeições físicas. Se as almas são desiguais, é que Deus as criou assim. Nesse caso, porém, por que a inata superioridade concedida a algumas? Corresponderá essa parcialidade à justiça de Deus e ao amor que Ele consagra igualmente a todas as suas criaturas?
Admitamos, ao contrário, uma série de progressivas existências anteriores para cada alma e tudo se explica. Ao nascerem, trazem os homens a intuição do que aprenderam antes: São mais ou menos adiantados, conforme o número de existências que contem, conforme já estejam mais ou menos afastados do ponto de partida. Dá-se aí exatamente o que se observa numa reunião de indivíduos de todas as idades, onde cada um terá desenvolvimento proporcionado ao número de anos que tenha vivido. As existências sucessivas serão, para a vida da alma, o que os anos são para a do corpo. Reuni, em certo dia, um milheiro de indivíduos de um a oitenta anos; suponde que um véu encubra todos os dias precedentes ao em que os reunistes e que, em consequência, acreditais que todos nasceram na mesma ocasião. Perguntareis naturalmente como é que uns são grandes e outros pequenos, uns velhos e jovens outros, instruídos uns, outros ainda ignorantes. Se, porém, dissipando-se a nuvem que lhes oculta o passado, vierdes a saber que todos hão vivido mais ou menos tempo, tudo se vos tornará explicado. Deus, em sua justiça, não pode ter criado almas desigualmente perfeitas. Com a pluralidade das existências, a desigualdade que notamos nada mais apresenta em oposição à mais rigorosa equidade: é que apenas vemos o presente e não o passado. A este raciocínio serve de base algum sistema, alguma suposição gratuita? Não. Partimos de um fato patente, incontestável: a desigualdade das aptidões e do desenvolvimento intelectual e moral e verificamos que nenhuma das teorias correntes o explica, ao passo que uma outra teoria lhe dá explicação simples, natural e lógica. Será racional preferir-se as que não explicam àquela que explica?
À vista da sexta interrogação acima, dirão
naturalmente que o hotentote é de raça inferior. Perguntaremos, então, se o
hotentote é ou não um homem. Se é, por que a ele e à sua raça privou Deus dos
privilégios concedidos à raça caucásica? Se não é, por que tentar fazê-lo
cristão? A Doutrina Espírita tem mais amplitude do que tudo isto. Segundo ela,
não há muitas espécies de homens, há tão somente homens cujos espíritos estão
mais ou menos atrasados, porém todos suscetíveis de progredir. Não é este
princípio mais conforme à justiça de Deus?
Vimos de apreciar a alma com relação ao
seu passado e ao seu presente. Se a considerarmos, tendo em vista o seu futuro,
esbarraremos nas mesmas dificuldades.
1ª Se a nossa existência atual é que, só
ela, decidirá da nossa sorte vindoura, quais, na vida futura, as posições respectivas
do selvagem e do homem civilizado? Estarão no mesmo nível, ou se acharão
distanciados um do outro, no tocante à soma de felicidade eterna que lhes
caiba?
2ª O homem que trabalhou toda a sua vida
por melhorar-se, virá a ocupar a mesma categoria de outro que se conservou em
grau inferior de adiantamento, não por culpa sua, mas porque não teve tempo,
nem possibilidade de se tornar melhor?
3ª O que praticou o mal, por não ter
podido instruir-se, será culpado de um estado de coisas cuja existência em nada
dependeu dele?
4ª Trabalha-se continuamente por
esclarecer, moralizar, civilizar os homens. Mas, em contraposição a um que fica
esclarecido, milhões de outros morrem todos os dias antes que a luz lhes tenha
chegado. Qual a sorte destes últimos? Serão tratados como réprobos? No caso
contrário, que fizeram para ocupar categoria idêntica à dos outros?
5ª Que sorte aguarda os que morrem na
infância, quando ainda não puderam fazer nem o bem, nem o mal? Se vão para o
meio dos eleitos, por que esse favor, sem que coisa alguma hajam feito para
merecê-lo? Em virtude de que privilégio eles se veem isentos das tribulações da
vida?
Haverá alguma doutrina capaz de resolver
esses problemas? Admitam-se as existências consecutivas e tudo se explicará
conformemente à justiça de Deus. O que se não pôde fazer numa existência faz-se
em outra. Assim é que ninguém escapa à lei do progresso, que cada um será recompensado
segundo o seu merecimento real e que ninguém fica excluído da felicidade
suprema, a que todos podem aspirar, quaisquer que sejam os obstáculos com que topem
no caminho.”
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